28 março, 2008

A Terapia Breve de Miller


Recentemente na Revista de Domingo do Jornal O Globo Judith Miller, filha de Lacan, fala do novo projeto de sua associação: “tratamento psicanalítico de curta duração” para os pobres. “Seria início do fim da tradicional psicanálise a longo prazo? De jeito nenhum, garantem os psicanalistas.” – escreve a jornalista. Para os ricos, a psicanálise continua a mesma: terminável e interminável, problematizando, como queria Freud, seu tempo da duração que é o tempo da subjetividade, levando-o até o ponto de “metamorfose do sujeito” (Lacan).
Ao propor duas psicanálises, à imagem e semelhança de duas justiças – a de rico e a de pobre – Miller desacredita a psicanálise de sua seriedade. Triste destino da psicanálise se ficasse nas mãos das filhas dos grandes analistas: Anna Freud reduzindo-a ao tratamento do ego e Judith Miller cortando-a em duas duvidosas fatias: uma terapia breve e grátis para os pobres e uma longa e paga para os ricos.
Miller propõe psicanálise gratuita para pobres por quatro meses que podem se prolongar por mais quatro totalizando um total de oito meses. Se os adeptos desse grupo estão propondo uma terapia breve, eles têm todo o direito, mas não se trata mais de psicanálise. Todas as tentativas de Freud de fixar o tempo de uma análise fracassaram quando não causaram dano maior ao paciente, como no caso, segundo Lacan, do Homem dos Lobos, “quatro meses podem ter ótimo efeito”. Por que quatro meses? Não é possível o psicanalista prometer curar os sintomas de um paciente a partir da análise do Inconsciente em tempo determinado. A entrada em análise depende do estabelecimento da transferência e da abertura do Inconsciente propiciado pelo ato analítico. Não há como prever o tempo de entrevista prévia e necessária a essa entrada. E, uma vez estabelecida a transferência analítica tendo o analista aceito o candidato a análise independente do que está acontecendo ele não tem o direito de convidar o analisante a se retirar por que terminou o contrato. Quando entrou no processo analítico duas vertentes estarão em jogo: a vertente sem fim, próprio à cadeia associativa das representações inconscientes, e a vertente do ser do sujeito que no final se desvela como aquilo que lhe é mais particular: sua modalidade de gozo, que resiste a toda significação, com a delícia e a amargura de ser o que é. À pergunta sobre qual será a duração do tratamento analítico a única resposta verdadeira continua sendo a pronunciada por Freud: “Ande!”.
Segundo Eliza Alvarenga, Presidente da Escola Brasileira de Psicanálise, “O fundamento: análise para todos. E o tempo pode ser prorrogado para até oito meses, dependendo do caso. Mas mesmo em períodos curtos é a psicanálise engajada com seus princípios, só que em menos tempo”. Um tal desvio da psicanálise é incompatível com seus princípios. Chamar essa terapia de psicanálise é desconsiderar que o sujeito do Inconsciente está também presente com seus desejos e sintomas nas classes mais desfavorecidas, oferecendo para eles esse tipo de tratamento que é um engodo. O preconceito é classificar os inconscientes segundo a classe social em nome de uma caridade. A velha história do lobo com pele de carneiro. O psicanalista pode e deve atuar na urgência e propor o tratamento psicanalítico para todos que o quiserem sem precisar manipular seus fundamentos. É o que diversas Sociedades e Escolas de Psicanálise, e até mesmo ambulatórios em Universidades, já fazem há muito tempo no Brasil. Isso não é novidade; sempre houve essa preocupação dos analistas independentemente de sua orientação. O analista a partir de seu ato com a oferta cria a demanda de uma análise independente do bolso do sujeito. Padronizar uma psicanálise a curto prazo é ir contra toda a luta de Lacan contra os padrões estabelecidos e burocratizados que impedem a psicanálise de se exercer na sua criatividade e singularidade de cada ato analítico. O contrato é contra o ato.
Estipular um prazo para o tratamento pode levar a um empuxo ao furor curandi do terapeuta contra o qual justamente Freud alertou os analistas iniciantes. Os analistas não devem se agrupar em brigadas terapêuticas nas comunidades. Não pode prometer a cura em quatro meses gratuitamente fazendo caridade com o furor de obter rapidamente respostas terapêuticas e fazer desaparecer o sintoma. Essa prática leva ao pior, na medida em que o sintoma é uma manifestação do sujeito que o analista deve antes de tudo acolhê-lo e fazê-lo falar ao invés de tentar liquidá-lo para engrossar as estatísticas dos êxitos da pesquisa. O analista não exerce seu ofício como obra social nem faz de seus pacientes cobaias de uma experimentação científica.
Apropriando-se da articulação que Freud estabeleceu entre a pesquisa e uma análise (uma vez que toda análise é em suma uma investigação), essa proposta enquadra essa terapia breve no âmbito da pesquisa, emparelhando-se portanto com o espírito científico de nossa época (uma das torres gêmeas) fazendo desses sujeito objetos de um protocolo à imagem dos que circulam nos centros psiquiátricos para a pesquisa de medicamentos. Por outro lado, prometer a reabilitação rápida do doente para que ele volte logo ao mercado de trabalho e ao consumo não seria estar ao serviço do discurso capitalista (a outra torre gêmea)? Não se pode pagar o alto preço do assassinato do sujeito com vistas a não se perder o trem-bala da contemporaneidade.
O capitalismo e a tecno-ciência são as torres gêmeas que sustentam o mal-estar na civilização contemporânea levando-a ao desastre e ao terror. A psicanálise não deve se submeter a elas. Nem se adaptar ao discurso capitalista com o empuxo-à-fama de seu marketing em nossa sociedade do espetáculo, nem se curvar ao discurso da ciência que rejeita a verdade do sujeito da história, do direito e do desejo. Ao se submeter a elas não há mais lugar para o Inconsciente nem para o tempo do sujeito.

(Antonio Quinet)

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